Cevei cuidadosamente o primeiro chimarrão do dia. Era manhã "cedito" e a rua ainda estava repleta de silêncio. O sol ainda não tinha despontado atrás dos prédios e algumas ruelas ainda estavam com aquela luz insegura do amanhecer. Havia muitos dias que o sol andava brilhante e forte, tornando o dia bastante quente. O ar estava limpo. De onde eu estava me sentia como o condor, observando tudo do alto. Dali, as demais montanhas pareciam estar muito próximas. Elas permaneciam indiferentes, sozinhas, despertando um estranho sentimento de proximidade e um vasto senso de distância. Ao olhar para elas me dei conta do paradoxo contido na grande diferença da idade destas montanhas comigo mesmo e sua impermanência relativa. Comparado a elas, meu corpo morreria e elas permaneceriam; as montanhas, as colinas, os campos verdes, o rio... Elas sempre estariam ali, e o que chamo de eu com todas as preocupações, insuficiências e os sofrimentos, desapareceria. Mas, comparadas com a origem, elas tinham o mesmo sentido de impermanência que eu sentia com relação a elas e isso dava o sentido real à esta palavra e um ritmo totalmente musical, numa seqüência que eu intuía ir até a origem de tudo.
Sempre foi essa impermanência que fez o homem buscar algo além das montanhas, revestindo-as com permanência, com divindade, com beleza - algo que não consegue ver em si mesmo. Mas isso não responde suas agonias, não aplaca seu sofrimento ou sentimentos. Pelo contrário, dá vida nova à tudo isso. Os seus deuses, as suas utopias, a sua adoração ao aparente impermanente não acabam com o seu sofrimento, pela total e absoluta impermanência da fonte de sua veneração.
O gavião pousado no pinheiro havia visto o ratinho atravessando a estrada correndo, e num segundo ele foi agarrado e carregado. A morte mais uma vez gerando e mantendo a vida. Havia apenas um som longínquo dos automóveis e de um riacho descendo alguma rua, mas vagarosamente a manhã quieta começava a se perder no barulho incessante do dia que nascia. Ouvia-se um martelar inconstante do outro lado da rua, onde uma nova casa estava sendo construída. Num instante, tudo o que acontecera no local desde o início dos tempos passou perante meus olhos, como um filme de altíssima velocidade. Não fazia diferença onde ele iria parar. Num átimo percebi que o momento de sua parada e recomeço era sempre o mesmo: o eterno agora. Sorvi o último gole do chimarrão, reparei um pouco da erva que havia desabado e lentamente servi outro mate...
quarta-feira, 29 de julho de 2009
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Amanhecer |
terça-feira, 14 de julho de 2009
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Busca & escalada |
A busca espiritual é paradoxal. Ao mesmo tempo simples e complexa. Exige um esforço e dedicação supremos (na obtenção de resultados imaginados ou desejados) enquanto ao mesmo tempo, aquilo que está sendo buscado está presente nas coisas mais singelas. Cada ação das formas e dos objetos pode ser considerada uma flecha a apontar para a Unidade por trás dos mesmos ou um véu a separar o buscador daquilo que está sendo buscado. Seu início acontece quase sempre em momentos de desespero, sua obtenção sendo o bálsamo a curar todas as dores. Não há lógica. Não pode haver. Qualquer coisa pode ser usada como ponto de partida: um texto, uma foto, uma conversa... Nada mais do que isso. Nenhum mapa. Apenas uma intuição cega a guiar o buscador.
Por outro lado, a realização (se há algo como tal) é algo que ao “acontecer” não deixa rastros. Não há como ser repetida nem mesmo por quem “realizou”. Não há mapas, métodos ou regras. Paradoxalmente, não há como atingi-la sem um. Como disse Bayazid AL-Bistami: “Deus não pode ser obtido a partir de alguma busca, mas somente aqueles que buscam O encontram”.
Assistindo uma reportagem sobre escalada de grandes montanhas ouvi uma frase de um dos alpinistas que descreve com perfeição a assim chamada realização ou o “entendimento” definitivo. Ele estava descrevendo em detalhes todas as intempéries pelas quais havia passado, o esforço quase sobre-humano dos últimos dias e, ao narrar os últimos metros da escalada – os mais difíceis – disse (ou eu entendi desta forma): “o incrível é que o topo não se revela. Você está ali, a poucos metros dele, exausto,sem forças, a ponto de desistir. Na verdade, você desistiu. Mas continua, sem saber mais nem como nem por que. Quando você vê, não há mais nada na sua frente. Naquele breve instante você apenas percebe que não há nada entre você e todo o resto... É apenas isso!”
Absolutamente perfeito! Não vi nenhuma descrição mais perfeita do que essa...
quinta-feira, 9 de julho de 2009
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Love In |
Há uns dias em que você acorda apaixonado. As cores do mundo percebido são mais vivas. Mais claras. Não há nenhuma distinção entre qualquer um dos eventos acontecendo na exuberante e envolvente natureza. O banho matinal, o café da manhã, dar comida aos cachorros, ver os cavalos galopando pela mangueira, o beija-flor ensandecido bicando todas as flores possíveis, os sabiás cantando a plenos pulmões como se a vida fosse acabar naquele exato momento, o neto acordando e exigindo atenção plena – como se fosse possível não prestar atenção a um furacão - tudo é uma coisa só, num continuum perfeito e indissolúvel. Hora de sair de casa. Até a música no CD player do carro tem a ver com o que é percebido, e isso parece ser tão óbvio que você tem ganas de dançar. E você dança agarrado no volante do carro - condição básica e necessária para não sair voando - sob os olhares sonolentos dos outros motoristas.
It’s something unattainable (*)
That you can’t live without
Você para o carro numa sinaleira. Na margem do asfalto à sua frente uma senhora descalça pega um tijolo e desenha quadros imaginários no chão. Subitamente, como se atingida pela mesma epifania na qual você está envolvido, ela sai correndo, pulando e dançando, como se uma energia insuportável tomasse conta de seu corpo. Uma lufada de compreensão e cumplicidade toma conta de você. E você sorri. Ela rola no chão, gargalhando. E você continua sorrindo...
And now the unexplainable
Has you riddled with doubt.
De repente, do nada, surgem três grandalhões vestidos de branco, correndo atrás do seu alter-ego dançante. Agarram-na com violência e a arrastam para uma caminhonete branca.
Things begin
Things decay
And you’ve gotta find a way
To be ok
Tudo o que começa tem que terminar... Mas você procura por uma forma de manter a linda cena matinal. Você olha para os lados tentando ver uma onda de indignação das pessoas que observam a violenta cena, mas nada acontece. Um ar de satisfação nos rostos de todos parece aprovar o acontecido, como se aquilo que os incomodava tivesse sido afastado. Isso parece assombrar a sua surpresa.
But it you want to spend the day
Wond’ring what it’s all about
Go and knock yourself out
Você tenta imaginar o que há de errado com a cena, mas não ocorre nada. Ao ver os três trogloditas olhando para o carro parado no sinal verde uma grande dúvida lhe assalta: será que eles eram “caçadores de êxtase”?
Why were put in this mess
Is anybody’s guess
It might be a test
Será que isso era um teste de sanidade? Você sente a mesma sensação de um elefante ao ser interrompido em sua corrida desenfreada dentro de uma loja de cristais. Aquilo estava mesmo acontecendo?
or it might not be anything
You need to worry about
But if you’re still in doubt
Go and knock yourself out
Você fecha os olhos por um momento. Ao ouvir uma estridente buzina, reabre-os. A cena que estava à sua frente havia mudado. O dia continuava ensolarado. A dançarina e os trogloditas haviam sumido. A música havia terminado. Apesar da mudança aparente, alguma coisa continua lhe envolvendo. Uma nova música começava e também parecia fazer sentido:
Is it getting better (**)
Or do you feel the same?
Will it make it easier on you now
You got someone to blame?
You say
One love, one life
When it's one need
In the night
One love
We get to share it
It leaves you, darling
If you don't care for it
OK.
Lembra da dançarina aprisionada. Junto com a lembrança vem a certeza que ela também havia percebido algo que não a deixaria mais, independente do que lhe fosse feito... Sorri novamente e segue em frente.
(*) - Jon Brion - Knock yourself out (Trilha do filme Huckabees)
(**) - One - Johnny Cash
domingo, 5 de julho de 2009
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Mastering |
Há no ocidente uma expectativa exagerada dos buscadores a respeito da figura de um mestre. Maestria não faz parte da nossa cultura e apenas nos são repassados relatos, fotos, gravuras, sonhos e devaneios. São exatamente estas idéias que impedem a percepção da maestria acontecendo. Numa lógica da mente, se o objeto não corresponde ao idealizado, ou desejado, ele é imediatamente descartado. Não é claro que alguém que se enquadre à qualquer demanda não possa ser um Mestre. Pode ser um “pop star”, um galã de novelas ou um artista de cinema...
A Maestria verdadeira é desconhecida. Temos padres, professores, psicólogos, psiquiatras e toda uma gama de ”past driven minds”. Mas não há mecanismos para identificar um Mestre verdadeiro...
Na presença de um Mestre você não fica incólume. Ou se entrega definitivamente, algo raro, ou resiste, critica e agride...
Na relação professor/aluno há uma transmissão de conhecimento. Na relação Mestre/discípulo não há nenhuma transmissão. Ou melhor, há uma “transmissão especial”, que só é possível com a desconstrução total do complexo mental construído ao longo dos anos. Com o abandono do conhecido. Isso é algo inadmissível para aquela construção que tenta manter o controle.
A relação mestre/discípulo é uma relação rara. Ela não é baseada no conhecido, na atração química ou no amor. É inexplicável como a origem dos pensamentos e insana como a mais doce loucura infantil. É baseada na confiança que emana do Amor.
O professor sabe sobre todas as coisas conhecidas. Sabe até sobre Deus e ministra longas aulas sobre o assunto.
O Mestre apenas é. Não sabe das coisas, pois não percebe nenhuma divisão entre elas. Ele apenas tenta lhe mostrar o que você é através de si mesmo. Mas ele também “sabe” que Isto é algo que não pode ser aprendido. Nem transmitido. Talvez seja esta a razão do sorriso enigmático das imagens de Buda. Talvez seja esta a razão da sua extrema compaixão. Pois paradoxalmente, não há relacionamento entre Mestre e discípulo. O Mestre sabe disso. O discípulo, não.